Diego Marques da Silva
Diretor Regional 1 da Associação Brasileira de Ensino de Biologia
Professor de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado
Coord. da Lic. em Ciências Biológicas Fac. de Ciências Biológicas e Ambientais
Universidade Federal da Grande Dourados

No dia 03 de maio de 2020, a Comissão de Transição para o Reitorado 2019-2023 da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) (Dourados/MS) iniciava seus trabalhos, junto ao reitor e vice-reitora (Etienne Biasotto e Cláudia Lima) democraticamente eleitos na Universidade. Porém, no dia 11 de junho do mesmo ano, o ministro da educação, Abraham Weintraub, acabou por designar outros dois nomes para os cargos máximos da instituição, nomes esses que nem se quer concorreram às eleições e quem a comunidade acadêmica mal conhecia.

Por uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, deferiu-se uma liminar que anulava as eleições de reitorado na UFGD, sob indício de irregularidades. Assim, os professores Mirlene Damázio e Luciano Geisenhoff eram os novos reitora e vice-reitor “pró-tempore” (para ser educado) da UFGD; interventores de Jair Bolsonaro num lugar estratégico para a sua luta político-ideológica. Lugar este: uma Universidade fronteiriça, com uma Unidade Acadêmica especificamente voltada para a Educação Indígena e Campesina (Faculdade Intercultural Indígena – FAIND), vizinha à 4ª Brigada de Cavalaria Mecanizada do Exército Brasileiro, no município com a maior reserva indígena e com a maior concentração de índios do país e com terras de grande importância para o agronegócio.

Para historicizar ainda mais, lembremos da esdrúxula proposta do Governo Federal sobre a mudança na governança das Universidades Federais (UFs). O Future-se é um programa do MEC divulgado, em 16 de julho de 2019, pelo (na época) ministro Weintraub e seu secretário de educação superior, Arnaldo Lima. O tal programa propunha uma fantasiosa “autonomia financeira” das UFs a partir de contratos de gestão com Organizações da Sociedade Civil (OSs). Pois bem, sem surpresas, a UFGD – já, nessa época, sob intervenção – participou do lançamento do programa e sinalizou intenção de avaliar a adesão. A comunidade acadêmica, então, esperou ansiosamente pelo início dos diálogos por parte da reitoria, o que nunca ocorreu e teve que partir da base, das Unidades Acadêmicas, as discussões, que resultaram num alto grau de rejeição e manifestos referentes.

Uma reviravolta democrática ocorreu quando o juiz da 1ª Vara Federal de Dourados (MS) sentenciou a decisão final (no processo em primeira instância) que as eleições ocorreram conforme a lei, revogando, então, a liminar que havia sido concedida. Nesse contexto, conforme explica o advogado Marco Pereira, assessor jurídico do Sindicado das (os) Professoras (es) da UFGD (ADUF Dourados), o sindicato abriu processo pedindo para que a portaria que nomeava a reitoria pró-tempore fosse anulada e fosse feita a nomeação conforme a lista tríplice que havia sido reconhecida válida pela justiça. Porém, coube recurso por parte do MPF, que está recorrendo em segunda instância, e outro juiz sentenciou que o pedido da ADUF deve aguardar até que uma sentença onde não caibam mais recursos.

Pois bem, enquanto a UFGD espera pelos lentos passos da justiça, que se tornam ainda mais vagarosos em meio à pandemia causada pelo Corona Vírus, o experimento do Governo Federal sobre “como desmontar uma Universidade Pública tão representativa em meio à guerra ideológica que se armou” segue causando muitos prejuízos. Em 13 de abril de 2020, a reitoria interventora emitiu resoluções (ad referendum) que suspendem reuniões dos Conselhos Superiores da UFGD. Esse foi considerado um tremendo golpe à democracia universitária, uma vez que são suas instâncias máximas de deliberação, abrindo espaço para que as decisões pudessem ser tomadas exclusivamente pela administração central, sem quaisquer formas de diálogo oficial junto à comunidade.

Infelizmente, a história triste de uma espécie da facismo acadêmico em construção não termina em abril deste ano. Com a crise provocada pela pandemia, a instrução normativa do Ministério da Economia sobre trabalho remoto dos servidores públicos federais e a medida provisória do MEC sobre o ano letivo, a administração interventora trabalhou, isoladamente, por meio de um Comitê Operativo de Emergência (COE) sem representatividade na UFGD, no que foi denominado Regime Acadêmico Emergencial (RAE).

Sem os instrumentos democráticos em funcionamento e, consequentemente, sem as garantias de representatividade da comunidade acadêmica nas deliberações, houve o que já era esperado: o RAE é um projeto mal feito, com várias inconsistências, deteriorante dos projetos de curso, isento de políticas de execução e, consequentemente, excludente em sua essência. Basicamente, o RAE coloca sob responsabilidade das coordenações de curso da UFGD a operacionalização de um ensino exclusivamente composto por atividades assíncronas, em que o estudante poderá cursar até três componentes curriculares em períodos exíguos de quatro semanas, o que contempla um módulo. No total, haverá quatro módulos ao longo do segundo semestre de 2020.

Este não é lugar para entrar em detalhes sobre o RAE. Em vez disso, discutiremos diretamente os efeitos dele sobre a comunidade universitária. Primeiro, tratemos do elo mais fraco: o estudante. A administração central da UFGD fez uma pesquisa que demonstrou que uma parcela de alunos não tem acesso à internet ou a equipamentos adequados, até porque uma parte deles reside em locais em que redes de qualidade nem alcançam (como são as comunidades campesinas e indígenas). Mesmo assim, o RAE não é acompanhado de políticas de inclusão. Também não se levou em consideração as alegações de que, mesmo havendo esses recursos mínimos, os ambientes residenciais não são adequados para o trabalho, o que causaria mobilidade e aumento de riscos de infecção.

Também não se pode dizer que os técnicos de UF são um elo forte na cadeia. Eles também vêm sofrendo com as decisões unilaterais da reitoria interventora, principalmente em relação a prazos exíguos e nada praticáveis que são, de maneira muito cega, atribuídos às tarefas. Nesse âmbito, assédios de vários tipos são cometidos, muitos deles invisíveis, inclusive, à compreensão do assediado, que se vê, apenas, na tarefa de obedecer a quaisquer custos.

Os docentes, que sempre são vistos como os “senhores” da Universidade, sempre em posição muito confortável em relação aos seus colegas de outras categorias, não estão de fora dessa crise. Com decisões autoritárias sendo tomadas acerca de suas atividades de ensino, pesquisa e extensão na universidade, uma liberdade essencial vem sendo atacada: a Liberdade de Cátedra. É cobrado, por exemplo, que cada professor ofereça, ao menos, dois componentes curriculares no RAE e, caso não tenha condições, deverá se justificar e ter sua justificativa aprovada em Conselho Deliberativo. Teve professor justificando que a internet de sua casa é de péssima qualidade e que enfrenta problemas financeiros para contratar outra. Mas que cabimento há nisso? De o professor ter que dar satisfações sobre sua vida pessoal para que diminua as chances de, num futuro próximo, ser prejudicado por não seguir a autoridade? A situação de emergência de saúde pública, por si só, deveria ser justificativa suficiente para tal.

Porém, em ainda mais evidência estão os professores que, democraticamente, ocupam lugar na administração das Unidades Acadêmicas da UFGD. Os diretores, nesse sentido, vêm demonstrando alto nível de stress por não conseguirem exercer suas funções em alinhamento com a administração central. Em grande parte, os coordenadores de curso e de pós-graduação vêm ocupando a linha de frente dessa batalha, pois é sobre eles que recai a principal atividade fim da universidade: o ensino curricular. Esses coordenadores estão numa encruzilhada em que, num sentido, há um Projeto Pedagógico de Curso com objetivos a atingir; de outro, há o autoritarismo da administração central que lhe manda subverter esse projeto. No meio, a angústia gerada pelos seus sensos éticos, de responsabilidade e os riscos que correm profissionalmente. Quaisquer ações na coordenação de um curso ou de um programa, por mínimas que sejam – nessas condições que a UFGD enfrenta – são ações que, ao seguir o RAE, podem prejudicar alunos e professores de seus cursos (e a sociedade, num sentido mais amplo) e, ao deixar de segui-lo, estimular sanções administrativas.

Vivemos tempos difíceis, conflituosos, perigosos e a Universidade e sua comunidade ocupam um lugar importantíssimo nas batalhas que estão sendo travadas. Um lugar de excelência na solução dos problemas por meio da ciência e da produção do conhecimento, e um lugar de relevância na tal “guerra político-cultural” contra as formas legítimas e democráticas de produção do conhecimento. Nesses tempos, é preciso que se atente para o fato de que os ataques à UFGD não gerarão resultados apenas para sua comunidade e entorno. A UFGD é um experimento do Governo Federal que, se bem sucedido, deve gerar consequências para todas as UFs do Brasil, para as formas legitimadas de produção de conhecimento e, considerando a importância delas para a soberania nacional, consequências para o país como um todo!